About Non-Fiction Fiction

Ruído Negro

I

Ocaso em Babel, ou, O Fim

Atrás do vidro, os raios de luz laranja do lento sol poente serpenteiam por entre as camadas de paralaxe dos pinheiros. E, de repente, tudo se torna negro.

Demora um pouco, talvez demasiado, para as luzes vindas do teto da carruagem florescerem e a sua intensidade subir gradualmente de zero para um fluxo estável de luz branca-azulada e fria. Depois deste cut to black, como numa série, é quase como um fade-in demorado. Pergunto-me porque é que ninguém pensou em ligar as luzes antes de todos sermos mergulhados no escuro para evitar esta surpresa desagradável. Mas ninguém está surpreendido além de mim. Todos eles, à minha volta, olham para um lado e para o outro durante uns segundos, e resumem a sua indiferença ou apatia, contemplando aquele ponto de fuga na distância para onde convergimos todos de forma inevitável. Ou, algo mais provável, para o ecrã à frente de cada um deles. Estou sentado num sofá demasiado alto e largo para mim ou qualquer outra pessoa, revestido de cabedal negro com alguns acabamentos em mogno. É tão grande que nem consigo olhar para trás de mim e ver o que eles fizeram. Até me podia levantar, mas insistiram que nenhum de nós o fizesse, por… “razões de segurança”, pelo menos é o que disseram. Vou assumir que tal como para a frente, atrás estendem-se pessoas pelo que parece ser o infinito. Estamos todos separados. Cada uma das nossas cabines está rodeada de vidro que parece estilhaçado, vitrais caóticos e incolores que fazem com que a minha perceção de qualquer uma das cabines adjacentes seja uma massa daquela cor fria da luz que se esvai até ao louro ou castanho ou ruivo ou multicolor do cabelo do possível ser humano ao meu lado. Consigo perceber o que cada uma das pessoas à minha volta está a fazer - estão todas a olhar para os ecrãs, por isso não é como se tal fosse complicado -, mas acho que nunca as conseguiria identificar, dado que os seus detalhes me são invisíveis. Todos os cubículos, acumulados na direção daquele ponto de fuga à minha frente, são multiplicados até números incontáveis, os estilhaços formam inúmeros padrões de Moiré, interferem uns com os outros, os seus detalhes minúsculos e únicos são esmagados pelo conjunto até que a certo ponto só consigo descrever o que vejo como uma massa amorfa de limites inconstantes, colorida com o mais desinteressante cinzento possível. Claro que para sequer aperceber-me desse cinzento, sinto que me tenho de me desviar do ecrã à minha frente. Não interajo com este desde que entrei e o usei para configurar a temperatura do meu pequeno espaço pessoal a uns confortáveis 24 graus e estiquei as pernas até ao comprimento que este cubículo me permite e tentei relaxar e ficar quieto no sítio como me disseram para fazer. Na janela à minha esquerda, só vejo negro puro, absoluto, não me são visíveis nem luzes nem paredes nem formas abstratas, sombras desconhecidas, possibilidades. Tudo o que consigo concluir é que não há nada lá fora. Em breve - e não faço a mínima ideia qual a definição desse “breve” -, iremos sair do comboio algures e começar as nossas novas vidas. Não sei onde sairemos, dado que assumo que estejamos debaixo de terra, mas nesse local indefinido à distância vamos todos começar uma vida melhor que a que deixámos quando entrámos neste comboio. Nunca voltarei a ver estas pessoas que consigo ver mas não identificar na minha vida inteira. Quando chegarmos, vamos ter o nosso espaço pessoal, só nosso, com tudo o que possamos alguma vez desejar… é difícil de sequer pensar na logística de uma iniciativa destas, e se uma só pessoa o fizesse facilmente seria levada à insanidade. Tantas empresas e território a comprar, de fornecedores alimentares a gigantes de tecnologia a construtoras, tantos imóveis a construir, tantos processos anti-monopólio a ganhar, tantas leis de tantos países pequenos a contornar e ignorar… Mas foi o que queria um multi-trilionário qualquer com um fraquinho por filantropia, pelo menos foi o que tinha escrito no seu testamento quando morreu já há décadas, um programa megalómano destes era o que ele achava ser a solução para salvar a humanidade, executado a qualquer custo, e assim foi feita a sua vontade. Demorou este tempo todo para o que ele intitulava de moonshot, o que ele tinha concluído, já décadas depois de fazer as suas vastas fortunas, num ponto da vida em que o seu nome já se começava a ser esquecido e ofuscado pelo nome das suas várias empresas, depois de falar com tantos líderes mundiais e peritos no topo dos seus campos sobre o que ele podia fazer para resolver os problemas do mundo, a sua conclusão era que este projeto seria a última oportunidade que tínhamos de salvar a nossa espécie no meio de todo o caos, de tudo a desmoronar-se, o planeta, a sociedade, tudo… Voltou à ribalta assim que faleceu e os seus notários revelaram o plano póstumo e, pelo pouco que me lembro visto ser ainda pequeno, começou-se tudo imediatamente e nenhuma crítica foi feita. Sempre houve, em tudo o que li e vi sobre este programa, um consenso inequívoco no bem que traria à humanidade. Agora, será possível para cada um de nós viver no seu próprio sítio, sem dificuldades, sem sofrimento, sem infelicidade, até ao fim das nossas vidas. Nem consigo imaginar quantas pessoas estão aqui, quantas carruagens tem este comboio, e esta é só, como eles dizem, a trial run. Chegará o dia, e não é assim tão distante quanto possa parecer, em que todas as pessoas do planeta vão receber a bênção da entrada neste comboio, neste programa e nesta nova forma de vida. O pequeno ecrã à minha frente brilha com um pouco mais intensidade para me avisar que tenho uma mensagem nova. Pelo que parece, ainda vai demorar um pouco até chegarmos lá, e é recomendado que eu coma um aperitivo ou beba alguma coisa enquanto espero. Não há nada com álcool na ementa, só vários tipos de bebidas açucaradas. Espero que não seja a única coisa que consiga beber para o resto da minha vida. Peço uma e ouço um guincho emudecido vindo de… algures acima de mim. Após uns segundos, um tubo no teto cospe uma lata de gasosa em cima de um prato para a bandeja à minha esquerda. Como esperava, cheia de açúcar. Enquanto sorvo, sem pressa alguma, tento olhar para lá do ecrã e ver aquela perspetiva infinita, tendo de me contorcer de forma um pouco desconfortável. Assim que acabo a bebida, ponho a lata de volta no prato, e ambos são sugados para dentro de um buraco que se abre e fecha outra vez numa fração de segundo, com um som curto mas um pouco alto demais, arrepiante até. Após algum tempo, começo a ficar aborrecido outra vez, por isso experimento mexer nos menus do ecrã de controlo. É um ecrã de dez polegadas suspenso à minha exata frente, ligado ao teto por um apoio fino de metal negro. Além da ementa, que não tem só bebidas açucaradas, mas também uma grande seleção de aperitivos para saciar viajantes esfomeados - ou, depois de tanto tempo em viagem, aborrecidos -, o ecrã também dá acesso a notícias do mundo exterior. Clico no botão News e sou bombardeado de forma repentina com uma torrente de informação, toda ela exagerada e sensacionalista, imagens demasiado brilhantes e coloridas, cabeçalhos todos em maiúsculas, uma abundância exagerada de pontos de interrogação, e começo de imediato a ficar com uma dor de cabeça, a relembrar-me que, fora deste comboio, todos os dias são assim, um bombardeamento não só da confirmação de que está tudo mal no mundo e que não para de piorar, mas também de como em teoria somos todos os dias mais prósperos e os indicadores mágicos nunca param de subir, tudo isto interrompido por publicidade para tudo o que talvez melhore as nossas vidas individuais nem que por momentos fugazes. Visto que não vim para este sítio para ter de saber mais sobre como o mundo à minha volta está a ficar mais terrível e mais próspero ao mesmo tempo, apesar de por vezes achar que só sinto os efeitos da primeira variedade destas notícias, fecho o menu de notícias, deito-me um pouco para trás na cadeira, e aguardo a chegada ao meu destino. Honestamente, mal posso esperar para estar lá, naquele sítio que daqui ainda parece impossível de alcançar, impossível sequer de imaginar, e apenas deixar tudo para trás, este mundo e estas pessoas que nem conheço à minha volta, deixar as massas de seres e o ruído incessante vindo de todo o lado, suor e calor multiplicado por milhares e milhões, e todas as luzes demasiado brilhantes e irritantes que piscam numa miríade de cores, queimando os meus olhos até ao dia em que acorde e só consiga ver breu, toda a sobrecarga sensorial que permeia a minha vida e a de todos nós até ao seu fim, pelo menos desde que… Mal posso esperar que tudo isso desapareça, acabe, para abrandar um pouco, viver a vida um dia de cada vez, e estar só, solitário, sozinho, só eu, sem vivalma à minha volta. Existindo à minha volta. Estorvando pelo simples ato infeliz de ser. Sinto-me abençoado por ter ainda conseguido nascer num tempo onde tudo está sempre a melhorar. Por alguns tempos, pareceu que não, mas… agora está tudo bem. No entanto, começo a reparar que os lugares à minha frente, que quase pensava serem infinitos, deixam de o ser, e o seu número agora finito começa a diminuir. À distância, o ponto de fuga finalmente é encontrado à medida que toma a forma concreta de um diminuto ponto negro. Mas este começa a crescer e a crescer e a crescer, englobando, consumindo uma parte do comboio cada vez maior à medida que o tempo passa. Está agora próximo o suficiente que consigo perceber o que se passa; em cada cubículo, as luzes vão-se desligando, as diminutas porções de espaço mergulhadas num nada negro como breu. E o que antes era um ponto continua a inchar de forma descontrolada, tornando-se numa massa escura, crescendo, crescendo, agora uma verdadeira parede disforme de escuridão que se está rapidamente a aproximar de mim, numa rota de colisão que me é impossível evitar à medida que mais e mais cubículos, mais seres, começam a desaparecer, vinte e uma filas à frente, treze, oito, cinco, três, dois, uma e sinto que estou a cair tão rápido, mesmo que esta sensação seja por uma fração de segundo, o comboio esvai-se, e só resto eu e o meu cubículo em queda livre, não consigo estar sentado, não consigo estar quieto, os meus braços e pernas a mexer-se fora do meu controlo incapazes de cair para baixo e descansar na cadeira e no chão, qualquer força que o meu corpo consegue recolher efémera e derrotada por esta queda livre que não parece ter alguma tenção de abrandar… e estou quieto outra vez como se nada se tivesse passado. Não aconteceu nenhum impacto pelo que parece, nada de… ação e reação, apenas fui de um número muito alto a zero em zero ponto zero segundos ou tão perto disso que nem sequer reparei. O meu cinto faz um pequeno clique e abre-se sozinho, e finalmente consigo recuperar do choque e perceber que à minha frente não há escuridão negra ou infinidade cinza, mas sim uma passagem que acaba numa porta. A passagem tem paredes brancas, demasiado brancas, com um brilho especular que indica uma limpeza obsessiva, ou, mais provável, automática. Não é só o brilho que dá uma sensação que estou num sítio demasiado sintético, o cheiro… não o cheiro, aliás, mas a absoluta ausência dele. Não noto sequer uma desvanecida fragrância de flores ou citrinos ou qualquer coisa que pudesse vir de um fluido de limpeza, apenas um nada estéril, uma ausência completa de algo que o meu cérebro só consegue interpretar como estranho, falso. Levanto-me, lento, trôpego, desta cadeira onde estou afundado, e começo a andar… coxear, admito. Sinto o meu corpo apático, os meus ossos e músculos com uma ligeira dor, e parece-me que estou sentado há horas naquela cadeira… mas não estive tanto tempo no comboio… será que estive? A nossa perceção do tempo às vezes comprime e dilata de formas que nos são ocultas, suponho. Depois de dezenas de passos curtos e desajeitados, consigo andar até a porta, num lerdo andar interrompido pelo quase-tropeço ocasional naquele chão demasiado polido, andar talvez uns… vinte metros de corredor. A porta à minha frente é metálica, uma liga cinzenta clara qualquer, e está, como tudo neste espaço, limpa por um ser obsessivo, anormalmente estéril. Não tem nenhuma maçaneta, só uma barra horizontal de um metal um pouco mais escuro, que diz ao meu subconsciente para a empurrar e entrar. É isso que faço, e ao abrir a porta revela-se outra sala, é claro, iluminada com uma intensidade um pouco mais misericordiosa, mas só um pouco, porque as paredes ainda estão pintadas e limpas e polidas da mesma maneira, aquele branco imenso, apenas iluminado por uma luz quase suportável, menos intensa, menos azul, um branco-alaranjado que é a primeira coisa que transmite algum tipo de calor neste espaço. Esta sala é mais larga e mais curta que o corredor, um cubo perfeito em vez de um prisma longo. Tal como o corredor, parece-me… estéril, e estaria vazia se não estivesse um ecrã grande no centro. Este ecrã é um pedaço retangular e plano de vidro com as pontas arredondadas. Debaixo dele, são expelidos minúsculos fios translúcidos, artérias esbranquiçadas, drenadas de cor, podres, que pouco depois entram outra vez num tubo de metal cinzento-claro que desce até ao chão, pelo que consigo ver. O ecrã brilha com uma mensagem para mim.

Oláááá! ^_^ Temos a certeza que mal podes esperar para ir para a tua nova casa, mas tens só de fazer uma coisita primeiro! Quando tocares em "continue" (não o faças ainda! >.< dá-nos só mais um minuto) vais ter de fazer o processo de sign-in para a SafeLife. Isto vai demorar uns minutos, e logo a seguir estás despachado e paramos de te chatear, ok? Por isso faz só esta pequena coisa por nós! Hehe~ ~from your little guardian angels at SafeLife

Após ler esta mensagem, toco em Continue no ecrã, que agora me pergunta para deitar a minha mão esquerda no quadrado branco que aparece, um pedido que obedeço com indiferença. O ecrã, que me banha de luz branca-azulada, é quente, mas sinto que esse calor é enganador, só o sinto em contraste com o resto da sala, um calor falso e sintético que toca na pele da minha palma. Uma loading bar progride para a esquerda, enchendo o quadrado com um gradiente azul claro. Assumo que esteja a digitalizar a palma da minha mão. Quando este processo acaba, o quadrado desaparece, dando espaço para as minhas informações pessoais. Nome, data e local de nascimento, residência anterior, coisas do género. Apesar de ter estes dados todos, pede-me para escrever o meu género, identidade sexual e raça. Não devia haver alguma função de autocomplete para estas coisas? Bem, de qualquer maneira não é como se eu seja um iletrado. Após confirmar todas as minhas informações pessoais, aparecem no ecrã uns Terms and Conditions muito longos, escritos num inglês ou legalês muito seco. No entanto, a primeira frase, ao contrário das outras, é… compreensível.

Todos sabemos que isto é um documento looongo e aborrecidoooooo! Não te preocupes, não precisas de ler todo, nós prometemos que tomamos conta de ti! ^_^

Só quero sair daqui, escapar da minha vida atual e começar a nova que me espera. Não quero saber destas merdices legais. O que é que eles me podem fazer, de qualquer maneira? Após ler a mensagem, vou até ao fim deste documento - algo que demora bastante mais do que estava à espera - toco em I Accept, e assino o meu nome com o meu indicador, um pouco atrapalhado, assinatura um pouco ilegível mas válida aos olhos da lei. Pergunto-me, o que será que acontece se tivesse recusado? Mas suponho que isso não é o meu problema, e duvido que alguém chegue a este ponto para recusar. Uma mensagem final - espero eu - aparece.

E está tudo! Esperamos que não tenha sido muito chato >.< Já estás despachado, só tens de voltar pela porta de onde vieste!

Viro-me para trás e vejo que a porta não parece ter mudado. A luz ficou mais ténue enquanto estava concentrado no ecrã, o que faz com que a sala pareça um pouco menos opressiva, mais alaranjada, um meio-dia agreste a tornar-se em ocaso enfraquecido muito como o que se estava a passar lá fora, acima de onde quer que eu esteja. É aqui o fim da minha vida, pelo menos da presente. De todas as nossas vidas. Nunca vou estar no exterior outra vez. Nunca mais vou sentir o calor de outro ser. Se calhar, para outra pessoa, são capazes de ser pensamentos estranhos, talvez horrendos, talvez até insuportáveis, mas para mim? Mal posso esperar… certo? É apenas um pouco… estranho, pensar sobre o assunto agora, mas tenho a certeza que esta hesitação não se poria se estivesse de volta lá fora com todos eles, todas aquelas… pessoas à minha volta. Esta vai ser uma melhor situação do que a onde estava, tenho a certeza disso. É impossível não ser. É impossível. Sim. Empurro a porta, lentamente, outra vez. Não consigo ver nada dentro da minúscula fenda que se expande, só escuridão. Agora que abri a porta até ao fim, vejo só um abismo negro contido pelo retângulo à minha frente, na direção do qual tomo um passo e

[Interrupção intencional que marca o fim do primeiro capítulo. O livro está completamente escrito, só precisa de ser editado mais uma ou trinta vezes.]


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