About Non-Fiction Fiction

Lissabon

Está já o voo Lufthansa de Estugarda a aterrar em Lisboa, no meio da cacofonia de ruído e turbulência, quando me ocorre abrir a persiana ao meu lado, revelando uma vista que seria uma desilusão se não estivesse por esta altura habituado ao tédio visual de todos os aeroportos. Lá fora, enquanto o avião desacelera, passam a altas velocidades alcatrão, relva e pouco mais, tudo o resto demasiado distante para discernir, até que, agora com calma, o avião se desloca até à entrada para o aeroporto, passando por camiões de catering e autocarros que levam os passageiros da porta de embarque até ao seu voo, ou do voo até ao aeroporto, e no meio deste demorado processo a janela minúscula e repleta do cinzento do alcatrão e do aeroporto e dos aviões e das pessoas diminutas que vagueiam lá em baixo perde a minha atenção, agora a tirar uma selfie para postar no Instagram, cara que sem dúvida evidencia a minha falta de sono mas também quem é que tem boa cara depois de um voo, o que interessa são os olhos azuis, cabelo claro, e neste país de anões até a altura pode servir para arranjar uma ou três paixonetas fáceis de uma noite, faço uma história que anuncia a minha chegada à lista de seguidores que já preaqueci com muitas portuguesas cujas fotos me interessaram.

Por fim, a manga do aeroporto estende e acopla-se ao avião, espero que as pessoas à minha frente saiam, algo que nunca parece findar até chegar tal momento, saio, apressado, impaciente, expectante de uns bons dias de férias bloqueados por toda esta burocracia aérea, não me dou ao trabalho de sorrir de volta para as assistentes de bordo cuja expressão é quase, só quase, sincera, e passo quinze minutos num trance automático que a minha memória lembrará como uma colagem distorcida de luzes, sinais de direções a amarelo e em três línguas, nenhuma delas a minha, a senhora muito formal, com sotaque britânico excelente, que anuncia as idas e vindas das caixas de metal voadoras onde muito infelizes nos temos de enfiar para ir até algum sítio com sol decente, até ver esse mesmo sol a brilhar no céu, agora desimpedido por nuvens, impedido só pelas teias incompreensíveis de estradas que rodeiam o aeroporto, mas por muito que gostasse de continuar a sentir este calor agradável que nunca sinto em casa tenho de entrar no metro, linha vermelha, até ao fim, cheio, cacofonia de vozes em inglês e alemão e francês e espanhol e japonês e árabe e chinês e italiano e no fundo do ruído algum português cujo volume vai subindo, não em uníssono, claro que não, à medida que o metro para em cada paragem, Oriente, Olivais, Olaias, tudo nomes que não me dizem nada e talvez também não digam grande coisa às massas de pessoas que entram e nos ensardinham todos ainda mais, portugueses e brasileiros e paquistaneses e angolanos, todos de cabelos escuros, passo em Alameda e Saldanha e metade do comboio esvazia-se dos cosplayers peculiares de feiticeiros do Harry Potter, e finalmente São Sebastião, mudo para a linha azul, uma estranha bifurcação, o português desaparece para a direção oposta do meu destino e voltam línguas latinas mais belas e germânicas e asiáticas mais austeras, as estações começam a parecer mais sombrias, menos coloridas, mais perigosas, mas por fim, Avenida, a minha paragem, subo as escadas rolantes e não-rolantes, vejo sol outra vez e uns bares muito interessantes à agradável sombra das árvores, agora só falta encontrar o tipo do Airbnb.

Depois de fazer o check-in na casa (perto da Avenida, um pouco a subir – se bem que qualquer sítio que vá sem ser na direção da baixa é a subir e não pouco devo dizer -, “hóspede” – não partilho a casa com ele, felizmente, seria um pouco constrangedor – simpático, um velhote alto e bem vestido, cordial, sorridente, olhos claros, uma casa com já alguns anos por fora e muito poucos por dentro, modernos interiores, repletos de luz, madeira clara e paredes brancas, uma kitchenette que com certeza não será utilizada, quarto surpreendentemente espaçoso com uma bela vista para o rio, aquela fronteira pouco definida onde o azul das águas se derrete no do céu cortada pelas montanhas verdes da outra margem que seria invisível numa manhã enevoada e com alguma probabilidade tornaria a margem do rio indistinguível da margem de um mar, não um mar bravo e cinzento de ondas iracundas mas um mar calmo, calmo como as costas quentes e coloridas do Mediterrâneo, um desses seria indistinguível acho, céu a humedecer-se das aguarelas amarelas que a tarde tardia principia a salpicar, mas aqui no Sul a tarde prolonga, demora, até estarmos já jantados e um pouco tocados de dois ou três copos de vinho branco… onde é que eu ia? sim, claro) desço até encontrar um elétrico amarelo como via em metade dos vídeos do Youtube de melhores sítios para ver nesta cidade e apanho-o para subir uma rua absurdamente íngreme, tão íngreme que em certas partes o passeio se quebra em degraus desta calçada branca ordenada e tão bonita, os olhos dos velhotes de camisas claras, calças escuras e cintos castanhos, todos os itens de roupa mais velhos que eu, comprimem-se do esforço que nunca deixa de o ser apesar das décadas passarem, e chego a um miradouro com uma pequena feira de presuntos, queijos, doces, vinhos, licores de mel e medronho e merda (merda? curioso), com uma vista que vai até a um velho castelo nas colinas do outro lado da baixa, casas de telhas avermelhadas e paredes brancas a amarelecer na tardia tarde dispostas sem padrão algum, sem ordem, numa descida que só cessa quando a terra acaba nesta margem e recomeça na outra, do outro lado da rua a entrada para o Bairro Alto de que tanto ouvi falar, ruas apertadas, não ainda cheias, mas já com alguns restaurantes a abarrotar, nove da noite ainda mal é noite aqui quando em casa já teria jantado há horas e estaria quase a voltar para casa cheio de cerveja e vodka, ainda nem comi depois de aterrar, por isso entro no primeiro sítio que não está cheio de turistas fadados inevitavelmente a uma embriaguez avançada dentro de uma ou duas horas e vómito ou porrada ou até coma dentro de três ou quatro, sento-me numa pizzaria, nada de especial exceto o vinho branco que é muito melhor que o seu preço sugere, uma garrafa e mesmo cheio de pizza estou já a começar a ficar tocado, levantar-me da cadeira para pagar e sair é um movimento demasiado lento e demasiado súbito ao mesmo tempo, e em alguns minutos de pedir pizza, scrolar pelas portuguesas tão bonitas que se espalham pela minha tab de Explore do Instagram (essa aplicação tão perspicaz que adivinha os meus desejos sem eu os ter de exprimir), e comer pizza, passaram já uma hora e meia e encontro-me sem bem perceber como na companhia de dois ingleses bem mais bêbedos do que eu, sigo-os até um sports bar ali perto e bebo umas (talvez dezenas de) cervejas até que um dos lads tão simpáticos (toda a gente é simpática quando se está no meu estado) vê o Liverpool a perder e entra numa gritaria com os lads do City na mesa ao lado que com expressões bastante desagradadas apesar da sua vitória se levantam, atiram os copos de cerveja ao chão da esplanada, ou rua dependo da perspetiva, avançam para um dos meus lads e começam a espancá-lo, nesta situação preparo-me para partir a minha cerveja de garrafa e mostrar algum respeito com um caco de vidro dourado-sujo mas sou atraído pela passagem tão angélica de uma rapariga de calções de uma curteza deliciosa e de cabelo castanho escuro longo e belo que ondula com a sua corrida para parte incerta, tanto que me levanto e sigo atrás dela enquanto ouço palavrões de um inglês com um sotaque que só é suportável quando se está tão bêbedo como estou, vejo um polícia a passar, passo por um cigano qualquer a tentar vender-me erva (que consideraria aceitar se não estivesse já informado de que a única erva no saco são orégãos), e depois de uma massa de estudantes pouco mais novos que eu mas muito mais bêbedos e felizes, a rua começa a descer e a despejar calçada alaranjada por estas luzes ténues de candeeiros pela colina abaixo, deixando uma vista, simplesmente… sem par, e sim, minto a mim próprio ao dizer isto porque por certo metade das ruas à minha volta darão lugar a uma destas, do castelo que vi há pouco descem casas até a escuridão noturna do rio, e parece que se consegue ver a cidade toda de um só ponto, aquele onde me situo, distraio-me da minha demanda por momentos para tirar uma selfie e talvez arranjar mais uns seguidores, mas quando estou prestes a tocar no botão com a câmarazinha a vista por trás de mim, tão limpa de pessoas, é agora poluída por um português baixo e carrancudo que nem se digna a esperar que eu acabe de tirar a foto, rude, passa sem dizer nada, sem me olhar sequer, e desaparece noutra multidão, todos eles absorvidos em álcool, eu prestes a juntar-me a eles depois de ajustar a foto para ficar com os olhos mais azuis, até que ela passa por mim outra vez relembrando-me do que me levou até este canto de rua sombrio que toda a gente parece querer evitar, a emitir murmúrios zangados «estou farta daquele idiota pobretanas» e afim, o que quer que isso queira dizer, eu a olhar para ela até que ela repara, pausa, olha para mim e a atração inverte-se, claramente interessada, umas bebidas para ajudar, prevejo que seja mais ou menos fácil…

De volta no quarto, luz da lua cheia a entrar sorrateira pelas frinchas das persianas, levanto-me da cama, levanto as persianas, tiro o maço de cima da cabeceira com um sinal de no smoking / pas de fumer / no fumar, sento-me no sofá, fumo um cigarro ao luar, fitando as nádegas redondas dela, agora expostas após a minha saída, até que o frio – para mim continua a ser calor, para ela assumo que não – a desperta, ela infelizmente veste de volta alguma da roupa, e senta-se em cima de mim, aconchegada, e penso em como não tenho matéria alguma de conversa com ela, e como nem sequer me lembro do nome dela… o que é que me chamaste quando estávamos a… Lissa?, Lissa, isso, ainda bem que ela fez esta pergunta, sim não é o teu nome, pergunto e depois de um riso curto e agradável responde bem é uma forma estranha de o dizer, Lissa, costumam chamar-me Lisa, um zzz e não um sss, o meu nome completo é Elisabete mas sei lá porquê nunca ninguém se deu ao trabalho de me chamar isso e nunca gostei do nome, mas vocês alemães dizem as coisas de forma muito estranha, nem sei se quero ouvir-te a dizer Lisboa continua ela por ali adiante, e preferia que o silêncio desta noite só fosse interrompido por papel e tabaco a arder lentamente em fumo, mas não se pode ser tudo. De manhã a Lissa acorda-me com uma surpresa (parece que gostou muito de mim) e volta para o trabalho, que começa às sete da manhã – o patrão, mesmo aos domingos, exige a máxima pontualidade – e seguem-se mais dias de comida, bebida, sol e lindas vistas, e mais noites com ela, outra vez, quando consegue sair do trabalho a horas, e com outras quando não é o caso. Volto à minha terra cinzenta, e ao recontar estes dias tão felizes ao Udo e ao Karl, não me sai da cabeça a ideia talvez parva de comprar uma casa lá em Portugal, até que vejo os preços, rio-me um pouco e vejo que com o que ganho aqui consigo sem grande problema até comprar duas, uma para arrendar ou, ainda melhor, fazer um Airbnb e imprimir dinheiro, leio com um café à mão a montanha de recursos para hipotéticos expatriados como eu, vejo que para mim, um freelancer, posso estar lá durante dez anos a pagar vinte porcento de impostos, metade do que aqui, metade do que lá se fosse português, quase que me cuspo a rir do quão absurdo tudo é, como é que é possível um país destes, quente, barato, solarengo, acolhedor, barato, lindo, cheio de mulheres lindas, barato! que paraíso! não consigo processar a realidade que leio na Internet, falo disto tudo com os rapazes e eles também ficam muito interessados nesse país pequeno e cheio de maravilhas.


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